
A morte, independentemente do tempo histórico, envolve-se num inevitável dramatismo inerente à finitude da condição humana. Num passado longínquo, na vida quotidiana, a morte simbolizava o fim de um período, e “eventual” começo de uma nova e desconhecida etapa. Nos dias que decorrem a morte não possui um efeito psicológico determinante na vida das pessoas; vive-se com a ideia de que “só os outros morrem”, sendo preferível não pensar muito na própria morte. Na Idade Média, o processo de consciencialização da morte gerava no indivíduo uma permanente preocupação, revestindo-se de uma forte componente trágica dissociada de qualquer pressuposto casual. A presença da morte causava no indivíduo um pesado temor e consequentemente elevado respeito.
Na Idade Média, e fruto de conjunturas bastante adversas (guerras, pestes, epidemias), a vida humana era curta e pouco representativa, pelo que, a morte era geralmente aceite como socialmente justa, fazendo parte do quotidiano como algo de natural. A grande preocupação com a morte residia na necessidade de preparar esse momento. No momento da morte tudo se pode reparar, através da absolvição! À semelhança do “Tribunal de Osíris”, na hora da morte efectua-se a pesagem da alma (balança composta pelas boas e más acções). O último momento, constitui-se como o derradeiro instante em que o moribundo enfrenta a morte, colocando-se em evidência a atitude perante a “visualização” de toda uma vida, determinando-se a salvação ou a anulação de todas as boas acções. Desta forma, o indivíduo conhece o resultado, ou seja a sua sorte, antes da decisão do juiz. È de referir que antes da reforma católica, não importam as acções/conduta durante a vida, mas sim, a atitude no momento final (morte); pressuposto este que muda após a reforma católica, impondo-se a necessidade de conduzir uma vida virtuosa e moralmente relevante, por forma a alcançar a salvação da alma.
O temor sentido em relação à morte assentava na componente trágica de uma má morte. A morte súbita era considerada uma morte feia, vil, um castigo não merecido. A morte clandestina, sem testemunho ou cerimónia era sinal de maldição. Importava pois estar permanentemente preparado para o acto da morte e enfrentá-la de forma solene “o pesar da vida está associado à simples aceitação da morte próxima...”.
A boa morte é desejável, sendo que nela o moribundo pode-se redimir das más acções de toda uma vida, pelo que existia na Idade Média, uma enorme preocupação para com a hora da morte. A boa morte exigia morrer deitado, de costas assentes no chão, envolto num ambiente de enorme solidariedade, onde a reconciliação com Deus era garantida através de todo um ritual de mágoa colectiva. O ritual da morte era composto por sacramentos e exaustivos testamentos carregados de gestos de caridade, beneficência, misericórdia para com os pobres. A questão testamental é de extrema importância na hora da morte, e vital para a tão desejável boa morte. As directivas testamentais são de elevada descrição, com especial destaque para as doações. Os testamentos comportam um sem fim de instruções aos herdeiros (linhagem, condução e gestão patrimonial) e à comunidade (obrigatoriedade de presença no enterro por parte de todas as ordens e clerezias, realização de missas e orações, determinações especificas relativas à vivência diária, deveres de preces, de cânticos etc,), pelo que se denota por parte do moribundo um exagero no controlo do futuro após a sua morte. Com uma boa morte, o acto da morte decorre com imensa simplicidade, com todo um ritual alienado de dramatismo/ausência de emoções fortes, evidenciando-se uma clara aceitação da morte como uma vontade divina, onde importa proceder a todo um ritual de penitência, evitando-se o purgatório e alcançando o paraíso.
No estudo da morte na Idade Média é importante assinalar a incorporação dos mortos no mundo dos vivos. Para tal muito contribuiu o culto dos mártires e as igrejas cristãs. Ao contrário das necrópoles extra-urbanas da época merovíngia (a localização do cemitério era afastada dos locais de habitação), verificamos a integração do cemitério como espaço sagrado no átrio das igrejas. Aqui se verifica uma mudança psicológica importante, ou seja, o homem passa a familiarizar-se com os mortos, co-habita com eles, respeita-os e dignifica-os.
É de todo verificável que a morte na Idade Média é revestida de uma forte componente social, existindo uma grande solidariedade no acto de morrer. Já no período contemporâneo, após o século XVIII, a morte assume os contornos que figuram nos tempos presentes; assiste-se a um incrementar de um dramatismo e impressionismo na forma como se lida com a morte. A morte passa a ser “ A morte do outro”!
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